quinta-feira, 2 de junho de 2011

Literatura-Arquitetura da alma

Obra-prima da escritora Natércia Campos, o romance "A Casa" ganha sua terceira edição. Livro será lançado, hoje, às 19h30, na Academia Cearense de Letras


O mercado editorial cearense nem sempre faz justiça com os escritores da terra. Se publicar ainda é uma batalha árdua, reeditar é talvez ainda mais difícil. Daí a importância do reaparecimento de uma obra como "A Casa", de Natércia Campos (1938 - 2004), lançado, originalmente, em 1997, que chega a sua terceira edição. O livro será lançado, às 19h30, na Academia Cearense de Letras.

O romance é considerado, por parte da crítica, como a obra-prima da escritora - ela mesma, uma das principais personagens de nossa história literária e filha de outro gigante das letras, o contista Moreira Campos. O projeto foi laureado na categoria Reedição (Prêmio Otacílio de Azevedo), do primeiro edital Prêmio Literário para Autor (a) Cearense, da Secretaria da Cultura do Estado Ceará (Secult).

O ponto mais alto
A nova edição de "A Casa" traz um texto de apresentação de Sânzio de Azevedo, escritor, crítico literário e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Penso que todos são unânimes em considerar o ponto mais alto da obra de Natércia Campos o romance ´A Casa´, que recebeu o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura no ano de 1998. Nada mais justo do que se reeditar o livro, tal como ela desejava: com todas as epígrafes (que fazem parte da estrutura do livro), a página de abertura escrita pela autora e a dedicatória ao pai, Moreira Campos", escreve o pesquisador.

"Angela Guitiérrez, que havia considerado ´A Casa´, ´um dos mais belos romances da literatura brasileira contemporânea´, dá esse depoimento: ´Lembro-me, à época do lançamento d´A Casa´, do espanto dos leitores (entre eles, me incluo), ao ler o texto de uma escritora da pancada do mar que sabia captar e exprimir, com tanta sensibilidade, até com detalhes preciosos, a mística dos costumes sertanejos", cita ele.

A própria Natércia Campos tinha clara a importância do romance para o conjunto de sua obra. "Talvez no romance ´A Casa´, ´os segredos múltiplos da reminiscência, o mundo que vive entre nós, obscuro e palpitante´, nas palavras do mestre Luís da Câmara Cascudo, ajudem-me ampliar esta singular saudade dos sertões da terra", anotou à época da aparição do livro.

Ainda sobre a obra, publicada originalmente em 1997, a amiga de Natércia, a também escritora Regina Pamplona Fiúza, se posicionou dizendo: "É um romance que inventa a si mesmo! É a literatura do olhar, da observação profunda, da descrição extremamente poética. E ´A Casa´ se produz na superposição de duas suítes temporais, como as duas vozes na música. É a interação perfeita do narrador-personagem principal com o Leitmotiv".

Exposição
Além do lançamento do livro, o qual não será apresentado apenas por uma pessoa, sendo a palavra facultada aos amigos presentes, Carolina Campos, filha da escritora, adianta que, paralelamente, acontecerão outras atividades: "Vai ser uma grande homenagem da Academia Cearense de Letras para a minha mãe. No sétimo ano de falecimento dela, vamos também realizar uma mostra de parte do seu acervo, a qual, tem como curadora Neuma Cavalcante, da UFC, onde o material se encontra atualmente".

Carolina Campos acrescenta que também haverá uma exposição dos quadros originais da capa de "A Casa", pintados pelo artista plástico catalão Pablo Manyé. Natércia Campos teve uma ligação muito forte com a Espanha, país onde sua filha residiu. "A melhor amiga da minha mãe era a também escritora espanhola Margarita Solari, que também morou aqui em Fortaleza, onde as duas estreitaram os seus laços de amizade. Além disso, seus dois primeiros netos, Thiago e Natércia, também nasceram em Barcelona", relembra sua filha Carolina.

Romance  
A Casa
Natércia Campos
Imprece, 2011, 136 páginas, R$ 20
Lançamento às 19h30, na Academia Cearense de Letras (Rua do Rosário, 1, Centro).
Contato: (85) 3226.0326

NELSON AUGUSTO
REPÓRTER

CRÍTICA

Natércia Campos: crenças e mitos
Na escritura de Natércia Campos, além da própria imaginação, existe uma fusão entre pensamento e linguagem, numa perfeita harmonia entre enunciação e enunciado. Trata-se de uma linguagem pessoal, que une o sentimento poético à capacidade de observação; linguagem entrelaçada, portanto, ao poético, ao lirismo; por isso, imaginação e memória se fundem e se confundem, tornando-se um corpo uníssono.

Desse modo, o tom poético imprevisto é um dos fulcros de sua expressão literária; e o místico, o fabuloso, o fantástico imprimem-se como reais, à semelhança do universo palpável. Atinge o tom épico e mitológico, fruto do tom da fábula, em linguagem plástica. É um romance narrado em primeira pessoa: a própria casa, sofrendo um processo de antropomorfização, conduz a narrativa. Assim, a edificação do texto funde-se à da própria casa: "Fui feita com esmero, contaram os ventos, antes que eu mesma dessa verdade tomasse tento". No princípio, a casa; depois, o que ela iria comportar. O processo de construção da narrativa consiste na conversão de tijolos e madeiras em memória.

A autora, cedendo o fio condutor do texto a uma casa, faz desta a encarnação dos poetas da oralidade. Nesse sentido, a tessitura do romance se aproxima da rapsódia: mais que a história de uma família, o que, em verdade, se imprime é a história de um povo, tecida a partir das manifestações do mítico, do místico, das crenças, das superstições, do folclore, das lendas, das tradições populares...

Da narrativa
A casa, enquanto espaço, é a casa-grande, morada da aristocracia sertaneja; foi edificada a partir de um conhecimento intuitivo, hierárquico de engenharia e arquitetura: o pé-direto alto (para a circulação de ventos); nas paredes externas, bem a meio, buracos grossos, abertos pelo lado de dentro e fechados com argamassa (para a defesa); um longo e escuro corredor a ligar os vários quartos divididos por meia-parede (para o controle da sexualidade); a varanda dando para o Norte e para o Sul.

A pedra de lioz (calcária, branca e dura, usada em cantaria), posta na soleira, funda a casa; fixada à entrada, defensora e guardiã, protegeria, então, a família dos malefícios. Sob tal pedra iriam ser enterrados os umbigos dos recém-nascidos; (para que fossem apegados à casa paterna); As mulheres não poderiam tocar na soleira (da mesma forma como na ara dos altares), pois ficariam estéreis.

As simpatias do plano mágico eram guardadas sob a pedra. Para o dono da casa deixar de beber ou de jogar baralho, abandonar hábitos errantes, o lugar privilegiado para ocultar-se a moamba era na soleira. As primeiras unhas cortadas do bebê e o primeiro cabelo aparado iam para a soleira; o primeiro dente, para o telhado; e o segundo era escondido sob o batente do limiar. Aí também se punha a ponta da cauda do cachorro fujão. As defumações começavam pela porta da rua, exatamente da soleira. Daí recebia a mãe o filho voltando do batizado.

Em "A Casa", a escritora Natércia Campos enumera, ao longo da narrativa, algumas superstições, tais como: abrir-se a porta sem a intervenção do homem ou dos ventos (chegada de Ela - a morte); criança que chora no ventre da mãe (dotada de poder de cura); não podem ficar no escuro doente grave e menino pagão (a chama das velas protege os necessitados).

E, como existe uma relação intrínseca entre o sagrado e a morte, é esta uma das presenças mais constantes.

CARLOS AUGUSTO VIANA
EDITOR DO CADERNO CULTURA

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